Sunday, March 3, 2019

Hélio Schwartsman e o hino nacional: ignorância presunçosa e simplificações rasteiras

 Eu me orgulho de não saber o hino 

Folha de S. Paulo, 27/02/2019
Nacionalismo, em doses baixas, pode ajudar, mas, em doses altas, torna-se produto tóxico

Eu não sei cantar o Hino Nacional Brasileiro e tenho orgulho disso. Na hierarquia do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, isso provavelmente me coloca numa categoria não muito elevada de cidadãos, mas, como vivemos numa democracia, posso dar uma banana para os valores propugnados por qualquer autoridade e ficar com os meus.

Minha rejeição aos símbolos augustos da pátria tem uma explicação lógica. Cresci nos anos 70. Uma das escolas que frequentei obrigava a garotada a hastear a bandeira e entoar o hino diariamente. Meus pais, quando souberam disso, fizeram questão de me dizer que o governo militar era uma porcaria, mas acrescentaram que eu não deveria repetir isso na escola. “Porcaria” foi o termo que eles encontraram para explicar para um menino de seis anos que os governantes de então haviam chegado ao poder por meio de um golpe e que torturavam e matavam presos políticos.

Meu cérebro infantil resolveu a dissonância cognitiva desenvolvendo uma espécie de alergia ao hino e ao nacionalismo. É claro que isso só faz sentido para mim e talvez para outros que tenham vivido histórias parecidas. Para a imensa maioria dos brasileiros, não há nada de essencialmente errado em conhecer e cantar o hino, até com entusiasmo, se assim desejarem.

O nacionalismo é um negócio complicado. Em doses baixas, é um elemento valioso para dar a grupos populacionais cultural e economicamente heterogêneos um senso de comunidade, o que facilita a cooperação. Em doses altas, porém, ele se torna um produto tóxico.

Ambição, sadismo e excesso de autoestima explicam a grande maioria dos atos de violência no planeta. Mas, para chegar aos grandes massacres da história, é necessário introduzir um quarto ingrediente, a ideologia, que costuma aparecer como nacionalismo ou religião. O governo Bolsonaro estimula os dois. Nutrir algum ceticismo em relação a eles é uma necessidade.

Parece que o "cérebro infantil" de Schwartsman não foi capaz de superar suas limitações mesmo após cruzar a marca dos 50 anos de idade. O jornalista ainda se agarra desesperadamente a narrativa de grupos revolucionários sobre o período militar para se orgulhar de sua ignorância.

Hélio Schwartsman parece ignorar também que a medida adotada pelo ministro Vélez Rodríguez foi criação do então ministro da educação de Luís Inácio Lula da Silva, Fernando Haddad.

No ano de 2009, o presidente em exercício José Alencar e o ministro Haddad assinaram a Lei nº 12.031, que tornou obrigatória a execução do Hino Nacional em “estabelecimentos públicos e privados de ensino fundamental”.


Apesar de classificar o nacionalismo como "um negócio complicado", o jornalista oferece apenas platitudes ao falar sobre o assunto:
"Em doses baixas, é um elemento valioso para dar a grupos populacionais cultural e economicamente heterogêneos um senso de comunidade, o que facilita a cooperação. Em doses altas, porém, ele se torna um produto tóxico."

É de partir o coração que tantos estudiosos e filósofos políticos tenham devotado tanto tempo e esforço ao tema sem nunca ter chegado a tão brilhante conclusão. Muito pelo contrário: alguns dos grandes pensadores políticos modernos vêem o estado-nação como garantidor da liberdade contra o absolutismo e a tirania. Em sua visão, o nacionalismo seria o oposto do imperialismo - tanto em sua forma clássica quanto na atual, com o globalismo e o transnacionalismo, que são uma tentativa de unir toda a humanidade sob o controle de uma única autoridade política com base em valores e princípios de uma elite intelectual e econômica que leva ao poder políticos sem rosto, como os burocratas da União Europeia, que se elegem sem votos e por isso legislam sem os interesses e bem-estar das populações em vista.

O raciocinio aí é, pois, o mesmo em favor do voto distrital. Quanto mais próxima do poder e dos governantes eleitos a população estiver, maior o controle do povo e mais fácil a prestação de contas dos poderosos.

O nacionalismo é visto por estes mesmos pensadores como uma extensão natural da família e da comunidade/tribo, o que confere o "senso de comunidade [...] que falicita a cooperação" mencionado pelo jornalista. Graças a esse sentimento comum, as pessoas entram em cooperação, protegendo e ajudando-se mutuamente e seguindo leis de forma voluntária. As únicas alternativas a esse sistema são a anarquia ou o uso da força para garantir obediência através da coação.

Um estado-nação é aquele em que a maioria da população compartilha certas características, como linguagem, religião e uma história comum, além de um senso de futuro compartilhado. Estas características, transmitidas de geração em geração, proporcionam aos estados-nação um nível de coesão e confiança que é difícil de alcançar em outros estados e formas de organização sócio-política.

Esses sentimentos de coesão e confiança, por sua vez, abrem um leque de possibiliddades. De fato, não é por acaso que a maioria das liberdades civis e políticas que tomamos como garantidas hoje se desenvolveu em estados-nação como a Inglaterra e a Holanda.

Yoram Hazony, filósofo político israelense, vai ainda mais longe. Usando leis bíblicas que regulam fronteiras e ações em território alheio, ele argumenta que o nacionalismo impede o imperialismo:
"A fronteira é onde as ambições de cada nação devem cessar. O primeiro lugar onde esta idéia aparece é na Bíblia, onde Moisés oferece fronteiras a Israel e diz aos judeus que ele serão punidos se incomodarem seus vizinhos."

De acordo com a perspectiva bíblica, as fronteiras nacionais não só protegem a população, como também servem para frear o eventual desejo deste mesmo povo extender seu poder e território.

Mas a auto-limitação não é meramente física. Ao contrário de outras religiões e do liberalismo, o judaísmo não é proselitista; não vê necessidade de impor seus valores e crenças. Além das sete leis de Noé, o extenso código legal da religião destina-se a governar somente os judeus.

A isso o rabino Jonathan Sacks chama de “a dignidade da diferença”. Os israelitas foram a única grande civilização na história que nunca buscou a aplicação global de suas leis, costumes e práticas religiosas; em vez disso, a Bíblia vislumbrou um estado judeu limitado, cercado por outros estados não-judeus que se auto-governam baseados em suas próprias experiências e valores particulares.

Isso, no entanto, não significa que a Bíblia não tenha princípios morais universais. De fato, Hazony argumenta que a idéia bíblica, mais tarde parcialmente adotada por estados-nação protestantes como Grã-Bretanha e Holanda, requer que qualquer governo legítimo satisfaça um "mínimo moral", e considera qualquer teoria do nacionalismo que não inclua tal moral inviável. No entanto, a Bíblia reconhece que o modo como esses princípios se traduzem em leis e práticas específicas pode diferir de nação para nação.

Essa é mesma posição de John Selden, um dos maiores historiadores da Inglaterra e provavelmente seu mais importante teórico do direito.

Em seu De jure naturali et gentium juxta disciplinam Ebraeorum, o cristão Selden explica que a lei natural foi descoberta ao longo de inúmeras gerações e chegou até nós em várias versões. Destas, a mais confiável seria a do Talmud, que descreve as chamadas "sete leis dos filhos de Noé", que proibem o assassinato, o roubo, a perversidade sexual, a crueldade contra os animais, a idolatria e a difamação de Deus, e exigem que os tribunais apliquem a justiça. A experiência de milhares de anos nos ensinou que estas leis moldam a paz e a prosperidade, que é o fim de todas as nações, e que elas são a raiz invisível da qual derivam as diversas leis de todas as nações.

No entanto, Selden enfatiza que nenhuma nação pode governar a si própria apelando diretamente a tal lei fundamental, porque “diversas nações, como diversos homens, têm suas experiencias e inferências diversas, e assim fazem suas leis crescerem até o que são, de uma só raiz ”. Assim, cada nação constrói seu próprio esforço para implementar a lei natural de acordo com um entendimento baseado em sua própria experiência e condições únicas. Portanto, desde que as leis se conformem aos princípios básicos, é sensato respeitar as diferentes leis encontradas entre as nações - tanto aquelas que parecem certas para nós quanto aquelas que parecem equivocadas, pois não só diferentes perspectivas podem ter algo a contribuir para a nossa busca da verdade (o tratamento de Selden com relação a pluralidade do conhecimento humano é citado por John Milton como base para sua defesa da liberdade de expressão na Areopagitica), como também podem ser mais apropriadas que as nossas para essas sociedades.

E é aí que o conservadorismo e o nacionalismo se contrapõem ao imperialismo liberal/progressivo, que, em nome de valores pretensamente universais, busca impor seus valores particulares e ideologias políticas sob o manto de "direitos humanos" independente das tradições, experiências e circunstâncias particulares de grupos diversos.

O jornalista encerra seu texto citando as causas da "maioria dos atos de violência no planeta". Por algum motivo o ex-petista-mas-ainda-progressista-militante omite que os responsáveis pela maior parte das mortes durante toda a história foram as causas nobres do liberalismo, como a igualdade e a "razão" -- geralmente ancoradas em valores anti-nacionais, como o socialismo e o comunismo, ou o anti-religiosos, como no caso da revolução francesa.

Só os primeiros mataram mais do que todas as guerras somadas, enquanto a última,  de acordo com o historiador Pierre Chaunu, matou mais gente em apenas um ano, em nome do iluminismo e da "igualdade, liberdade e fraternidade" (e contra a religião), do que a Inquisição durante toda a Idade Média em toda a Europa. Entre junho de 1793 e julho de 1794, 17 mil pessoas foram condenadas a morte e executadas pela revolução francesa.

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